quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Meu pai


Tocar violão. Descobri bem tarde que meu pai sabia tocar violão. Já o tinha visto dedilhando um acordeom, mas não sabia que ele manejava um violão.
            Aos poucos fui descobrindo suas qualidades e habilidades. As habilidades que eu conhecia nele eram dirigir um trator, arar a terra, cultivá-la, cuidar dos “peões”, homens contratados por meu avô para cuidar da lavoura e do gado. Sempre foi cuidadoso no que fazia. Tinha suas mãos calejadas pelas ferramentas que um homem do campo, como ele, sabia manejar muito bem.
            Mas, ele ia além do que se via. Atrás daquele porte alto, pelo menos p/ mim, magro e embora não falasse muito, mantinha sempre um sorriso. Seu rosto nunca deixou transparecer as preocupações de um homem sonhador, fiel aos seus princípios e compromissado com sua família.
Meu pai sempre foi um homem exemplar. Ensinou a ler e escrever entre meus quatro e cinco anos de idade. Já alfabetizada (por ele) lia todas as palavras que via. Com ele conheci os números, as operações matemáticas. Foi com ele que aprendi o que sei sobre Deus, Jesus Cristo, Vida Eterna.
            Um homem de vida simples, mas de muita sabedoria. Não precisou surrar os filhos para educá-los. Era exemplo, era ético. Conduziu-nos com muito amor no caminho do bem. Fez questão que frequentássemos a escola e mostrou-nos a importância dela. Um leitor assíduo da Bíblia, amante dos Salmos. Ensinou-nos desde cedo o caminho da igreja. Caminhava conosco e isso foi fundamental na nossa formação.
            Sou a mais velha dos sete filhos. Conheci dias bons, de fartura e conforto. Mas também vivi anos de dias difíceis. Os vestidos de “lese” acabaram dando vez aos de chita, os sapatos de verniz envelheceram dando lugar a chinelos e alpargatas que eu simplesmente detestava. Os picolés e guaranás dos fins de semana desapareceram. O conforto de uma casa com ladrilho vermelho e encerado, telhas de barro e paredes de tábuas ficaram somente na lembrança, pois agora o lar doce lar era coberto de “tabuinhas”, as paredes de troncos irregulares de madeira e chão batido.
            À noite, era possível ver o céu salpicado de estrelas pelas frestas da parede. Mas a noite de lua cheia me assustava. Tinha medo de que com a claridade dela eu visse algo estranho, como os de muitos “causos” contados pela “peãozada” do sítio do meu avô, que aproveitava para contar histórias quase numa disputa para ver quem contava melhor.
Acho que preciso contar que morei no interior de São Paulo até os seis anos. Com a morte da minha avó e a partilha dos poucos bens de meu avô meu pai quis aventurar-se no Paraná. Foi aí que morei na casinha  já descrita.
Domingo era dia de ir à igreja. Tinha a distância de sete quilômetros de casa. Estrada de terra com muita areia. A Escola Bíblica Dominical começava ao meio dia, por isso, almoçávamos às dez horas para sairmos às onze. Minha mãe levantava cedo, matava o frango e o preparava num molho delicioso. Mas, antes de servir meu pai orava. Quase sempre uma longa oração o que favorecia a prática de algumas traquinagens como pegar a mistura (sempre o melhor pedaço do frango) um dos outros. Então, já começávamos a oração com as mãos sobre o prato para cobrir a carne.
            Toda essa adversidade não foi capaz de fazer meu pai deixar de sonhar. Talvez essa pessoa sonhadora que sou seja herança paterna. Morando no sítio de um tio de meu pai, foi preciso desmatar e iniciar o cultivo da terra arrendada. Era lavoura de feijão, algodão, amendoim, milho e café sem contar as hortaliças e a criação de porcos e galinhas vindos daí a gordura e a carne para nossa alimentação.
Quando falo de adversidade, na verdade, refiro-me ao fenômeno natural chamada geada. Era sempre assim, solo preparado, semente plantada e aí vinha ela branquinha, branquinha e acabava com toda a plantação. Sonhos desmoronados. Recomeço. Assim foi por vários e vários anos.
Mas tinha uma coisa boa quando geava. Meu pai dizia: esta noite vai gear. Então eu e meus irmãos colocávamos água numa vasilha, misturávamos açúcar e deixávamos do lado de fora. Pela manhã corríamos para chupar o gelo.
Esse começar de novo levou-o a conhecer Mato Grosso. Queria tentar mais uma vez e, com meu irmão mais velho (depois de mim) partiu deixando minha mãe com cinco filhos. Levava a esperança de encontrar boa terra e arranjar uma colocação por lá. Voltaria depois e levaria a família.
Eu já era casada nessa época e por isso meu pai não me viu grávida e quando retornou meu primogênito já havia nascido. Foi muito bom vê-lo de novo, mas era fácil reconhecer de que sua saúde não estava tão bem e que mais um sonho se desvanecera. Mas, bastou melhorar um pouco para mais uma nova tentativa de melhorar de vida. Dessa vez, Sumaré, estado de São Paulo era seu destino e mais uma vez com Adilson, o segundo filho.
            Não me recordo exatamente quando vi meu pai, pela primeira vez tocando um violão. Só lembro-me de como fiquei fascinada pelo instrumento. Então disse para mim mesmo: um dia tocarei violão.